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[Crônicas da Pree] Crônicas bolivianas – Chapter III

[Crônicas da Pree] Crônicas bolivianas – Chapter III

Bolívia, Histórias de viagem, Peru

Decidimos nos despedir da cidade branca (Arequipa) no último dia do ano, 31 de dezembro de 2013, de madrugada. O Ônibus sairia às 4h, e tínhamos que estar na rodoviária às 3h. Como o ônibus nunca chegou, resolvemos dormir em um sofá cheio de chicletes grudados nele até que algum aparecesse para nos coletar de volta à La Paz, onde esperávamos passar o Ano Novo, caso nenhuma outra surpresa acontecesse no meio do caminho. Às 6h30 subimos num baú.

Como se sabe, tudo pode acontecer nas estradas Bolívia-Peru, que são, aliás, cercadas de cruzes, devido as altas taxas de mortes. Em alguma ocasião cheguei a pensar que se tratavam de simbólica ou religiosa forma de proteger os motoristas, porque eram MUITAS. Mas, fiz pesquisa entre os locais, e as cruzes simbolizavam, mesmo, que vários tinham batido as pernas por ali. Seria, então, uma viagem com emoção.

Atravessar a cidade peruana de Puno também chamou nossa atenção. Eu nunca vi algo parecido na vida e talvez não esqueça. Algo acontecia por lá, pois o trânsito era lento, não saíamos do lugar, era claustrofóbico. Não havia asfalto, as ruas eram formadas por buracos e lama. Pingos das poças de lama pingavam nas cabeças dos porcos vendidas pelas cholas.

Cholas: as mulheres que usavam roupas típicas camponesas. Ouvi dizer que os espanhóis, no século XVIII, obrigavam as índias a usarem aquelas roupas, inclusive a fazerem o penteado repartido ao meio, algo imposto pelo vice-rei Toledo. A expressão era pejorativa, usada entre os índios, visto que elas abandonavam o campo para se submeterem aos grandes centros comerciais e trabalhar para os espanhois. Hoje, o termo é usado com orgulho entre eles.

Vendia-se de tudo nas ruas desestruturadas de Puno, onde a pobreza e a falta de infraestrutura básica eram visíveis e cortantes.  Contava-se dinheiro e cortava-se um pedaço de algum animal em seguida. Assim também acontecia em El Alto, distrito boliviano caótico e engarrafado próximo a La Paz, por onde necessariamente se passa em caso de regresso do norte à capital do país de Evo Morales.

Atravessar Puno (Peru) e El alto (Bolívia) nos agoniaram, achávamos que passaríamos o ano novo ali dentro do Ônibus e começamos a nos arrepender da decisão de ter deixado o colchão de ar vazio e furado para trás, em Arequipa. Mas os deuses são bons, e chegamos às 21h em La Paz.

A cidade fervia, nada ficava parado, nada estava fechado. Era dia de lucrar, afinal, La Paz era a capital comercial da terra Boliviana. Os taxistas estavam em peso nas ruas, e foi um deles que nos levou de volta ao nosso albergue Loki, onde negaram nossa estadia pois tudo havia ficado lotado na nossa ausência. As rodoviárias estavam fechadas. Ninguém saia da cidade até dia 2. Perdemos a ceia da virada anunciada pelo hostel e não veríamos mais gringos pelados à meia noite.


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Cansados e desapontados, rodamos a cidade atrás de albergues, todos igualmente lotados. Pra não passar a virada num táxi, nos hospedamos em um hotel, muito mais caro, próximo ao mercado das bruxas – o que, ao final, foi a melhor coisa que poderia ter nos acontecido.

Nosso quarto no hotel Condeza ficava no sexto andar, e tinha uma janela gigante que nos dava de frente com as luzes da cidade inteira. Era emocionante observar a cidade dela. La Paz era marrom, esquisita, toda desordenada, e ficava dentro de um buraco (literalmente) rodeado por montanhas dos Andes. Era feia, era linda. Linda. Não víamos os nevados da janela,  mas era especial estar lá. Ter voltado de Arequipa era estar “em casa”. Numa com cama e chuveiro quente. <3

Já eram 22h45 quando fizemos o check in. Deitamos estafados na cama, observando as luzes melancólicas lá fora. Victor queria dormir, meus olhos também dormiam, mas achei deprimente a ideia de passar o ano novo dormindo, então o convoquei a colocar um casaco e descer comigo pra achar algum lugar pra brindar.

Tudo lotado, ou encerrando, não tínhamos ideia do que estávamos fazendo.  Foi assim que fomos parar num bar irlandês lotado de irlandeses bêbados que riam alto, com música alta e  staff decidido a cortar o serviço da cozinha na hora de atenderem ao meu pedido.

Pedimos um Concha y Toro e dois pratos. Um deles, o meu, viria daí uma hora. A moça garantiu que o serviço da cozinha continuaria a noite toda.  Não continuou, levei na orelha, pedimos a conta e seguimos para o hotel embaixo da mesma chuva. E foi assim o nosso ano novo boliviano irlandês.

Não devem ter contado pra vocês, mas não existem supermercados ou McDonalds por lá. Eles são nacionalistas mesmo e tenho a impressão de que o rosto de Evo Morales estaria estampado até na lata do leite condensado, se fosse possível. Era meio assustador: por todo os lados, lá estava o Evo. Nas faixas, nos billboards, na TV. Ele comandava mesmo, e não pude deixar de achar aquilo surreal.

Eu e Vic não curtimos mcdonalds, mas adoramos um passeio econômico, e os mercados ajudam muito nisso, sabemos.  Mas se vc quer um mercado na Bolívia, vai ter que ser paciente. Não tem um a cada esquina como acontece aqui no Brasil. Mas foi num desses que compramos suprimentos que ajudaram na nossa economia até Arequipa e também até a região de Potosi, no sul da Bolívia, onde veríamos o deserto de sal, em Uyuni.

A ideia era fazer três dias de viagem, conhecer o deserto, as lagunas, e um pedaço do Atacama, no Chile, mas, repito: nenhum ônibus saía de La Paz do dia 31 a 2 de janeiro, por isso “perdemos” dois dias de viagem. Não estava lá muito conformada, mas superei o sentimento ao conhecer o deserto. Era tudo bonito e salgado demais, e suspeito que tenha sido um dos momentos mais cool da minha pequena trip-life.

Tão incrível que o fato de estarmos desavisados e pouco informados sobre o que nossos pés sofreriam não abalou as sensações. É que não se vai ao deserto de sal esperando areia branquinha desértica, mas crostas de sal duras, cortantes e dolorosas, e água branca (que suja sapatos, pele e roupas).

Eu, que tinha levado apenas um tênis (não impermeável) para toda a viagem, não poderia molhar mais o meu, sob pena de ficar descalça e doente nos dias frios seguintes, portanto, tentei fazer o trajeto a pé. Impraticável. Voltei a vestir a meia e tentar caminhar pelo deserto com ela, mas foi insuficiente. Do-ía pa-ra ca-ra-leo.

Meu fofíssimo companheiro ajudava me emprestando o tênis impermeável dele em alguns momentos, enquanto ele ficava no jipe me esperando voltar. Moral da história: poderia ter sido mais legal se tivéssemos levado uma sandália forte, adventure. E de short é melhor, vai por mim, principalmente se no bolso tiver um bloqueador solar.

De volta à Uyuni com nossos novos colegas juvenis argentinos, percebemos alguns postos e banheiros onde podíamos lavar nossos tênis, roupas e peles. O sal saia rapidamente. O chão do banheiro era mais sujo que a própria privada, então eu me lavava subindo nas meias, que eu havia estirado no chão do chuveiro, e que depois joguei fora. Benditos as meias e os lenços umedecidos que levamos.

Bendito também o almoço que havíamos pagado e comemos por lá mesmo, no deserto. No prato, macarrão cozido tipo avemarie (ou paternoster), sem sal ou qualquer molho, beterraba e cenoura raladas, uma carne (até hoje não sabemos qual) a milanesa cheia de oleo, maionese e quetichupi. Pros famintos do deserto, nada melhor. Se de dieta, sinto muito.

Mais 11 horas dentro de um ônibus, e estávamos de volta a La Paz. Descansamos um dia inteiro no hotel Condeza e decidimos subir o Monte Chacaltaya no dia seguinte.  A subida foi emocionante. Havia precipícios e neve e gringos animados dentro da lotação, e eles gritavam a cada curva. No início, achei irritante, até que comecei a emitir sons tb, em reação ao frio na barriga gerado pela altura.

Quanto mais subíamos, mais granito caia, mais neve víamos. No topo, neve pura. Era tanta neve e tanto frio que eu só conseguia tremer e pensar em como aqueles caras sobreviveram por meses nas cordilheiras brancas entre Chile e Argentina em 1972. (Aqueles, que comeram os próprios coleguinhas, você sabe, adoro aquela história).

Pedi um chá de coca e fui fotografar o fúnebre e deserto casebre que nos abrigava do frio. Enquanto isso, Victor se juntou ao grupo de alpinistas. A diferença é que eles tinham luvas e bastões e equipamentos para subir o morro nevado. Victor não tinha nenhuma dessas coisas, só um gorro e um bom casaco. Mesmo assim, foi ao cume e voltou lindo, todo orgulhoso e feliz, com a certeza de que foi uma dos momentos mais legais da viagem. E eu também.

Passamos o último dia nos despedindo de La Paz com calma, muita caminhada no mercado intrigante das bruxas e muito amor pela cidade, agora nublada. Embora muitos digam o contrário, os bolivianos foram muito educados com a gente na maior parte do tempo, e eu só tive dificuldade de apreço àqueles que furavam as filas.

Na Bolívia, fila é substantivo subestimado. Ela pode estar enorme, mas muitos cidadãos vão feito formiguinhas diretamente ao guichê, enquanto você não acredita que eles acabaram de se inserir, daquela forma, no contexto da sua frente. É mágica.

Brava que sou, pedia educadamente que fossem para o final da fila, em todas as ocasiões. E, em todas elas, me respondiam da mesma forma, com sorriso e frases do tipo “hehe, calminha, é que, sabe, eu, sabe… eu precisei passar na sua frente e… hehe.. vc não se importa, né?”.

“Jeitinho boliviano” a parte, as lembranças daquele país bonito, assim como do Peru, são as melhores. Voltamos mais pobres do que imaginávamos, mais fortes, mais salgados, e muito mais felizes.

Leia o primeiro capítulo dessa historinha aqui e o segundo, bem ali.

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Texto da Pree Leonel

About the author

Viciada em viajar, mas que sossegou - só um pouco - no Chile pra abrir um hostel. Já esteve em 9 países e mais de 100 cidades fora do Brasil. Não sabe nadar (mas sabe andar de bicicleta). É facilmente comprável com doces e bom café. E é mão de vaca (isso é um dado importante).

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